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terça-feira, 14 de julho de 2015

...e a sociedade? Ainda é rentável?


Enquadramento

Um indivíduo isolado não faz democracia. A Democracia exige indivíduos com conexões entre si no formato "todos a todos", isto é, que constituam um grupo. O aumento de indivíduos por grupo aumenta exponencialmente a complexidade das relações possíveis. 


Quantidade de pessoas e relações no grupo
A Democracia política abrange grupos de milhares e milhões de indivíduos comunicando entre si, portanto a sua qualidade depende directamente do valor da sua estrutura comunicativa e esta depende directamente da época, da sociedade em que existe e dos instrumentos comunicativos disponíveis.

Assim, funcionarão hoje  os modelos de Democracia de épocas passadas? Três perguntas-respostas: 

√ Há alternativas?; 
√ Há efeitos perversos?; 
√ É rentável?



C - Ainda é rentável?

A questão da partilha

Um exemplo,

Imaginemos uma Câmara Municipal que, durante uma semana, faz uma feira e pretende muitas fotografias para divulgação e promoção.
Contrata vários fotógrafos profissionais, dá a cada um temas distintos, desde visitantes, gado, divertimentos, acessos, comidas,... até imprevistos como zaragatas, roubos, namoros, brincadeiras de crianças, etc, para poder seleccionar e divulgar.
Como apoio, monta um centro de coordenação com vários técnicos para ir verificando as fotografias obtidas, a quantidade, qualidade, temas e re-orientar os fotógrafos para o dia seguinte.
Como é óbvio, os custos organizacionais são elevados com salários, deslocações, eventuais estadias, material fotográfico, staff de apoio, etc.

Esta era a organização normal e rentável em épocas passadas mas, hoje, surgiu o Amador Profissional, o indivíduo possuidor de máquina com qualidade, com destreza e talento na sua utilização, motivação, disponibilidade e sentido da oportunidade, o que vai possibilitar uma organização diferente.

Na verdade, a sua diferença para o profissional tradicional não é a competência, eventualmente iguais, é a sua autonomia e autogestão. Por exemplo, a dita "liberdade de imprensa" na prática é a liberdade dos donos da imprensa, pois um jornalista só publica se a hierarquia do jornal quiser, porém um bloguista publica o quer quer, quando quer e como quer. O mesmo sucede com autores com os seus ebooks, músicos com seus clips, que publicam na internet e se libertam do controlo de editoras.

Um caso paradigmático foi em Itália, 2006, com o documentário da BBC, Sex crimes and the Vatican, referente a abusos sexuais de padres. O canal TV- RAI adquiriu os direitos para a sua emissão mas as hierarquias políticas, igreja e administradores não o permitiram. Um grupo de bloguistas subtitularam o documentário e publicaram na Internet que rapidamente teve milhões de visitas, apesar do jornal Avvenire da Conferência Italiana de Bispos o considerar uma calúnia. Dias depois a RAI difundiu o documentário.

A utilização de Amadores Profissionais com a sua característica de autonomia e autogestão permite utilizar um método alternativo ao tradicional para criar uma base de dados fotográficos e com custos baixos.
Assim, complementando a participação do cidadão Amador Profissional, Câmara Municipal pode oferecer um site na internet para recepção, difusão e partilha de todas as fotografias que para lá forem enviadas com o nome do autor e o tema. Depois, basta seleccionar as pretendidas para a revista, folhetos e posters da Câmara.

O anterior staff de coordenação é substituído pela arrumação automática com base nos temas. A promoção dinamiza-se por si própria por contaminação social (buzz-buzz) na família, amigos, emprego e até nas crianças e jovens que querem participar. O empowerment do cidadão, a sua destreza tecnológica e a sensibilidade fotográfica é solicitada e promovida.

Esta hipótese da utilização do fotógrafo amador profissional foi a proposta do Flickr, em 2005, na Parada da Sereia em Coney Island, NY, e foi um sucesso.

Na prática é apenas uma perspectiva diferente da dinâmica de grandes grupos. Tradicionalmente, na política (da esquerda à direita) os grandes grupos são dinamizados por staffs de controladores a orientar participantes enquadrados em estruturas e lideranças.

A alternativa trazida pelo século XXI baseia-se num sistema de auto-controlo e auto-coordenação que propõe decisões em autonomia. Aparecem novas realidades sociais impensáveis no século XIX por estarem fora dos limites conceptuais dos teóricos políticos da época e, portanto, não consideradas nos seus paradigmas e modelos.

Estas novas realidades podem ser resumidas por serem de auto-funcionamento e custos reduzidos e poderem englobar milhares de participantes por dia em dezenas de países e centenas de cidades em simultâneo, como no caso do Occupy:


Parece óbvio que não é possível pensar a Democracia de hoje utilizando paradigmas tradicionais, oriundos do século XIX, nos quais esta realidade pertencia à ficção científica. O problema é que, para os modelos em uso na democracia e partidos, esse funcionamento é utópico, recusado e impedido por alterar relações de poder.

Como exemplo actual, o Goggle permite auto-coordenar escrita colectiva com custos baixos e de alta eficácia. O documento é, em tempo real, lido, alterado e confirmado por várias pessoas pelo que, não só ninguém pode reivindicar ser o autor de uma linha escrita, como também ele tem a validação de todos.
Dantes, uma obra colectiva era constituída por capítulos, cada um de autor diferente, que eram depois encadernados em conjunto. Ser colectivo significava aceitação, do tema e equilíbrio da compilação, não significava escrita colectiva. Pelo contrário, no sistema Google, cada linha é da responsabilidade de todos e se um dos participantes não existisse todo o documento seria diferente.

Noutro exemplo semelhante, o "simples" Skype permite a cooperação e colaboração de vários técnicos no mesmo trabalho por auto-coordenação, mesmo estando em locais diferentes, apenas por sincronismo de horários, flexíveis em função de tarefas ou de condições pessoais. 
O processo por ser complementado por email de "um para todos", sistema que não precisa de sincronismo emissor-receptor e possibilita feedback instantâneo com as mesmas características.

Como exemplo, foi assim que foi escrito o e-paper (pdf) "Técnicas de Face-a-Face na Sensibilização Ambiental" em dez dias, tendo 64 páginas com texto, fotos e vídeos.
Os autores, situados em 3 cidades diferentes, nesse período nunca tiveram encontro face-a-face apesar de pertencerem à mesma empresa, colaboraram nos conteúdos, na escolha de fotos e vídeos, propondo, recusando, validando em tempo real o resultado que ia nascendo, desde as hipóteses de capa (alterada 5 vezes) ao seu conteúdo.

Como conclusão, neste momento a sociedade já está disponível e preparada para um novo tipo de coordenação em novos formatos de cooperação, colaboração e decisão colectiva, permitindo eficiência e eficácia com baixos custos organizacionais.


A questão da cooperação

Uma esmola não é uma partilha entre dador e pedinte pois não há troca entre ambos do tipo "toma lá... dá cá". Mesmo a compra ou venda de batatas que é uma troca "toma lá... dá cá" de dinheiro por tubérculos também não é partilha. A partilha implica um sistema de comunicação activo, criando uma teia relacional de sincronismo e confiança.
Uma dádiva-colecta e/ou uma dádiva-colecta reciproca de dinheiro, objectos, informação, serviços (por ex., ternura na prostituição), não significa necessariamente partilha.

Como exemplo, a entrega de alimentos ao Banco Alimentar, e deste aos pedintes, não é um sistema de partilha é apenas um fluir de dádivas-recolhas sucessivas entre duas classes lógicas, os "possedentes" com recursos e os "pedintes" sem recursos, através do facilitador, um intermediário que recebe dum lado e entrega do outro.

Tecnicamente, para a dádiva-recolha passar a partilha e a cooperação se iniciar é preciso que, a nível de conhecimento entre os indivíduos, aconteçam três etapas:

1º - todos sabem;
2º - todos sabem que todos sabem;
3º - todos sabem que todos os outros sabem... que eles sabem.

Esta sucessão provoca o nascimento da confiança. Como exemplo, uma relação pai-filho, ou marido-mulher,  é muito diferente se é do tipo "eu sei que tu sabes e tu sabes que eu sei" ou, em alternativa, "eu sei que tu sabes mas tu não sabes que eu sei", os dois níveis de confiança criados são diferentes.

Porém, convém realçar que apesar desta evolução ser condição necessária para construir confiança grupal não é condição suficiente, como se provou no caso de Kitty Genovese, em 13 Mar 1964,


Kitty Genovese foi atacada duas vezes seguidas, violada e morta na presença de 38 cidadãos do bairro Queens, NY, que observaram o acontecimento de sua janela e nenhum chamou a policia, ou a ajudou
Este caso tem sido muito estudado procurando entender o que se passou e foi originar várias teorias entre elas a "síndrome genovese", o "efeito observador", a "inacção por difusão de responsabilidade", etc.

Numa perspectiva grupal, todos sabiam o que se passava e "todos sabiam que os outros sabiam que eles sabiam", simplesmente essa igualdade foi obtida por uma simples recolha individual de informação que nunca partilharam entre si, nem criaram redes de confiança. Assim, eram simplesmente uma classe lógica feita de observadores individuais isolados entre si, muito afastados de um fenómeno grupal.

Posteriormente, quando estas testemunhas foram inquiridas, concluiu-se que o facto de "todos saberem que os outros sabiam" tornou-os confiantes de que alguém chamaria a polícia e, portanto, nenhum chamou. É apenas um efeito perverso de um condição positiva necessária.

De facto, a condição necessária de todos saberem que todos sabem estava realizada, mas não era suficiente. A teia grupal de confiança não existia, na verdade eles não eram confiantes uns nos outros eram apenas crédulos uns nos outros.
A confiança exige condições reais de sustentação que eles não tinham, ela não pode ser baseada em pura crendice como, por ex., estratégias de campanhas políticas que jogam com a credibilidade dos crédulos.

A missionação cultural e política, os comícios, os discursos, a TV e os jornais não são partilha informativa são dádivas-recolhas informativas. Elas vão provocar o saber que todos sabem e criar a condição necessária para o grupo existir mas não são suficientes para criar redes de sincronismo e confiança imprescindíveis na Democracia. O exemplo do escândalo de Boston, apresentado a seguir, permite aprofundar esta diferença.

A questão da colaboração


Padre John Geoghan
Desde 1950 que, diversas notícias sobre a pedofilia do Padre John Geoghan, são difundidas no massmédia.
Todavia depois dos escândalos, a acção habitual é ele ser retirado de uma paróquias e nomeado para outra. Como exemplo, em 1984, foi nomeado pelo Cardeal Bernard Law para a paróquia St. Julia, Weston, depois doutro escâdalo.

Esta estratégia é a normalmente seguida nestes casos, quer sejam de pedofilia quer de agressões policiais ou escolares, abusos, incompetência por alcoolismo, etc, pois o padrão é aplicar uma solução para abafar o escândalo e deixar o problema como está.

O interessante é que este padrão é encontrado nas estruturas organizacionais, nas hierárquicas, sindicais, de classe e até nos próprios colegas que sabendo o que se passa, olham para o lado, alegando lealdade profissional. 
Parece ser mais importante esconder o escândalo e "desconhecer" o facto do que assumir a responsabilidade de resolver o problema nas suas consequências e afastar a pessoa da função e apoiar o seu tratamento.
Esta posição pessoal só se altera quando é o próprio filho a ser mal operado ou morrer na queda do avião por alcoolismo de técnicos ou a ficar em coma por maus tratos policiais ou escolares. 

No caso de Boston, a pedofilia do Padre John Geoghan sobreviveu, durante 34 anos, 6 paróquias, 130 crianças molestadas pois, apesar das crises, sempre se "olhou para o lado" com a estratégia de "resolver o escândalo e não o problema".
A situação tem a mesma matriz da morte de Kitty Genovese onde "todos sabiam que todos sabiam o que se passava" e tudo continuou na mesma.

Porém no início de 2002, o Boston Globe publica um artigo em duas partes sobre a vida do Padre John Geoghan que agitou a comunidade. Algumas semanas depois, numa noite de Janeiro, 30 paroquiantes juntam-se na cave de uma Igreja e dão inicio ao VOTF - Voice Of The Faithful

Algumas semanas depois são centenas e em Julho fazem a 1ª convenção com perto de 5.000 membros, alguns dos quais de fora de Boston. O crescimento continua e em 2004 têm perto de 25.000 membros e está em 20 Países. Em 2002, o Padre John Geoghan é julgado e preso e, em Dezembro, o Cardeal Bernard Law viaja até Roma e renúncia, renúncia essa que o Papa João Paulo II aceitou.

É vulgar e normal o nascimento e desenvolvimento da VOTFO que é extraordinário é o seu crescimento duplicando quase todas as semanas, sem estruturas, sem lideres e sem comando centralizado. A taxa de crescimento é anormal pois passar de 30 para 5.000 são 15.000% em 6 meses e para 25.000 são 80.000% em 2 anos. 

Nas Democracias do século XIX isto era impossível e nas Democracias do século XX implicava custos organizacionais, estruturas, hierarquias e lideranças muito dispendiosas em dinheiro, esforços, tempo e coordenação, difíceis de implementar em 4/5 meses com um ritmo de crescimento tão elevado.
O que se passou?

Com o slogan "Keep the Faith, Change the Church" era claro que o movimento não se satisfaria apenas com, pontualmente, expressar e resolver o ultraje, queriam ir mais fundo, queriam mudanças estruturais. 
A ousadia dessa intenção era grande. Laicos a quererem intervir na gestão da hierarquia da Igreja nunca tinha acontecido nos seus milhares de anos de existência apesar de, em 1960, o Concílio Vaticano II ter declarado que a Igreja era composta por padres e paroquianos. Todavia, em 2002 isso aconteceu, o Padre Geoghan é preso e o Cardeal Law renúncia.

A situação mudou em 2002 porque o email, redes sociais, internet e weblogs partilharam a informação e fizeram colaboração sem precisar de comando central, enquadramentos e estruturas de apoio de grande volume.

Nestes modelos a sua base é a criação de núcleos locais de amigos, colegas e conhecidos que funcionam em autonomia colaborativa e se expandem com facilidade e rapidez, simultaneamente em muitos locais. O interessante é que não ficam "afiliados" localmente mas, conhecendo as redes, conectam-se onde querem, com quem querem e quando querem. Numa palavra, a sua afiliação é com a internet e não com estruturas locais ou centrais. Modelo diferente do actual sistema partidário.

Sob o ponto de vista da difusão e crescimento, redes de apoio e redes de crítica tem o mesmo efeito, difundem e acrescentam factos, outras histórias, outros argumentos. Posições são assumidas e mais redes são constituídas. 
O jogo de comentários pró e contra nos jornais online não tem o mesmo efeito, pois o jornal funciona como comando central canibalizando para si as comunicações. É uma espécie de "hub" ("aeroporto") onde chegam e partem notícias e quem controla o "hub" controla a difusão. Nas redes o modelo não é "muitos-a-UM" e também "UM-a-muitos" mas sim "muitos-a-muitos".

No caso de jornais essa difusão-recepção não passará a rede excepto se se libertarem do "hub" (jornal) e se conectarem directamente, passando a ser "muitos-a muitos".

Isto aconteceu com a rede que detonou a Airline Passengers'Bill of Rights sobre os apoios a passageiros em aeroportos quando há longos atrasos.
Kate Hanni depois de ter sofrido um caso desses, em 2007 viu num jornal de Austin um artigo sobre atrasos de voos, comentou dando pormenores e no fim acrescentou "Anyone from this flight please contact me".

Houve vários contactos inclusive oferecendo-se para fazerem outros contactos e, assim, nasceu a rede. Desenvolveu-se,  conectou-se com redes de agências de viagens, outros problemas se agregaram tais como voos superlotados, má assistência a bordo, etc, e a Airline Passengers'Bill of Rights começou a definir-se.
A saída do "hub" do jornal, com seus comentários sucessivos, foi o factor crítico de sucesso para se transformar numa rede com o objectivo de criar o Airline Passengers'Bill of Rights.


Conclusão

Por um lado, existe uma Democracia baseada num modelo militar de cariz democrático, do tipo "elege-me e obedece-me", feita de estruturas de enquadramento recheada de grandes e pequenos "Q'ridos lideres", ordens, hierarquia, disciplina partidária, migalhas de informação e confiança baseada em crendice.
Por outro lado, surgem movimentos e organizações com outro estilo, sem lideres nem estruturas de enquadramento, com autonomia e criatividade, baseados em autogestão e auto-colaboração, e com resultados significativos.
A sua eficácia é um crescimento possível de 15.000% em 6 meses (VOTF) o que no século XIX seria um milagre.

Este funcionamento já existe na sociedade, por ex., VOTF, Occuppy, estudantes na Bielorussia com o método smartmobChina, etc, e nas empresas, por ex., Pixar com o trabalho em rede. Os seus suportes tecno-sociais são telemóveis, Internet, redes sociais, fotos, vídeos e empowerment do cidadão, suportes esses que continuam a crescer e inovar mesmo em sociedades repressivas à revelia das políticas impeditivas.
É preciso não esquecer que revoluções e evoluções sociais, não são novas tecnologias, nem novas estruturas, são novos comportamentos e estes brotam por todos os lados.

Neste século XXI já há diversos métodos, mas a base é a mesma, é o Scenius, ou gestão pelo contexto, em substituição do Genius, ou gestão pelo "iluminado" vulgo "Q'rido líder". 

Numa metáfora poderá dizer-se que Scenius é a liderança do agricultor que prepara a terra, lança a semente mas, daí em diante, é a semente que tem o controlo e toma decisões descentralizadas. Ela fica em autogestão, cresce, desenvolve-se e dá frutos sempre em sintonia e equilíbrio com o contexto. Não dependente de "ordens" do agricultor... e quando este o tenta, isso é negociado e ela tem sempre a última decisão de "fazer ou não fazer".

Os novos comportamentos
aparecem e crescem por todo o lado.
Continuação...

... a Democracia depende directamente da sociedade e esta dos seus cidadãos que, com as decisões que tomam, trazem o futuro consigo. Assim, como continuação ter-se-á o 9º post "Nos indecisos está o futuro".

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Indice do Blog
(com links para os posts já publicados)

No princípio era o caos
A viragem da civilização 
Fugindo da estupidez organizacional
A evolução aos "éssses 

Temporada 2 - Soluções?
Não guiar pelo espelho retrovisor

Morreu o consensus, viva o dissensus

A técnica do Jazz e o dissensus
E assim, co-labora ou morre

E por fim, a democracia da cumplicidade 
Aqui no futuro?

O 1º sonho

Video resumo: Nova Democracia

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