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quarta-feira, 1 de julho de 2015

...e a sociedade? Alternativas pós-tradição

Enquadramento

Um indivíduo isolado não faz democracia. A Democracia exige indivíduos com conexões entre si no formato "todos a todos", isto é, que constituam um grupo. O aumento de indivíduos por grupo aumenta exponencialmente a complexidade das relações possíveis. 


Quantidade de pessoas e relações no grupo
A Democracia política abrange grupos de milhares e milhões de indivíduos comunicando entre si, portanto a sua qualidade depende directamente do valor da sua estrutura comunicativa e esta depende directamente da época, da sociedade em que existe e dos instrumentos comunicativos disponíveis.

Assim, funcionarão hoje os modelos de Democracia de épocas passadas? Três perguntas-respostas: 
√ Há alternativas?; 
√ Há efeitos perversos?; 
√ É rentável?


A Tradição

Quando a sociedade e seus instrumentos comunicativos evoluem a Democracia também tem que evoluir sob o risco de convulsões desadaptativas entre o modelo instalado e o querer dos cidadãos, seus participantes.

A Democracia está instalada nos grupos sociais pelo que a sua evolução é dependente do que acontece à vida grupal. Um grupo nasce e desenvolve-se em torno de 5 níveis de maturação que exigem sucessivamente cada vez mais energia e esforços comunicativos e vão dando origem a características novas. São eles: 

 participação
 partilha
 cooperação
 colaboração
 acção colectiva

O modelo democrático herdado do século XIX, com o seu formato institucional, centra-se apenas nos dois primeiros níveis e limita os seguintes a poucos sub-grupos específicos, para se poder adaptar às condições tecnológicas e socio-culturais então existentes.

Implantação da República, Lisboa 5 Maio 1910,
aqueles cujos nomes não ficaram na História
Isto quer dizer que nos grandes grupos políticos a maior parte dos cidadãos funcionam como cidadãos de 2ª com funções bem determinadas e sazonais.
Como exemplo, a votação de 4 em 4 anos, distribuição de informação (colar cartazes, distribuir panfletos, guiar carros com altifalantes,...), presença em manifestações de apoio ou contestação para marketing de pressão,... e, claro, contribuição monetária que, se é a estatutária, significa recursos de funcionamento mas, se é extra e volumosa, significa pressão a possíveis desejadas orientações ou, na gíria, discretamente chamados os "grandes apoiantes".

No século XXI, a par da evolução dos instrumentos comunicativos, deu-se o empowerment do cidadão tornando difícil a posição de cidadão de 2ª, agora discretamente chamados "sociedade civil", isto é, aqueles que assistem ao trabalho dos que têm a profissão de políticos, às vezes em part-time e não necessariamente profissionais.

Em termos técnicos este bug baseia-se na "pobreza" da maturação dos grupos participantes na Democracia. Dos 5 níveis atrás citados, os três últimos (cooperação, colaboração, acção colectiva) não alcançam a generalização, desenvolvimento e potenciação possíveis, portanto, o modelo democrático em uso está desadaptado da realidade do cidadão e da sociedade actual, bastante diferente da existente quando foi criado.
Hoje a Democracia pode evoluir para modelos mais eficientes e eficazes que respondam às novas condições e necessidades.

Deste modo, o questionamento do modelo tradicional herdado, e em uso, vai ser feito por respostas a três perguntas:

1ª Ainda é rentável?
2ª Tem efeitos perversos?
3ª Há alternativas?

Começando pela ordem inversa, ver-se-á primeiro as possibilidades e depois os problemas.


Há alternativas?

O processo normal de formação de grupos (forming) quando subordinada a enquadramento formal  desenvolve-se sucessivamente do 1º ao 5º nível, consumindo tempo, energia e esforços nesse percurso. No mínimo, começa por participar de corpo presente, assistindo e ouvindo, e acaba por construir e aceitar como sua a decisão colectiva e age em concordância. Um percurso em cinco etapas desde o simples participar à complexidade do compromisso e da responsabilidade grupal.

Todavia, este percurso pode ser simplificado em grupos pequenos, isto é, começar do 1º e passar logo ao 5º, num curto-circuito das etapas intermédias que poderão depois existir, ou não, tal como sucedeu em Maio-68 com a dinâmica dos grupúsculos.

Exemplo

Não vivi Maio-68, mas tive uma experiência semelhante no Chile, em Maio de 1994, onde vivi a passagem directa do 1º ao 5º nível de maturação grupal sem intervenção de qualquer instituição ou organização exterior. 

Depois de um trabalho em Talcahuano, no Sul do Chile, aquando do regresso a Lisboa, decidi passar mais de uma semana deambulando por Santiago e arredores, sozinho, sem plano e sem destino, aproveitando imprevistos, um pouco ao estilo on the road de Jack Kerouac. 

Sempre me senti integrado nas ruas cheias de vida, com comunicações soltas, fáceis e agradáveis, principalmente nas divertidas conversas em português e espanhol (que não falo).

Um dia, ao andar na rua, senti que tudo estava diferente, a cidade estava triste e com ar de enterro, caras fechadas, músicas e cantares tinham desaparecido das zonas populares. Muitos homens levavam uma flor na mão. Não percebi nada do que se passava e pela primeira vez senti-me sozinho e isolado.

Relembrando filhos perdidos no tempo de Pinochet
Em determinada altura, junto de um grupo estilo "vizinhança", parei e, sem dar por isso, comecei a participar observando e partilhando uma tristeza que não sabia a origem. Um "avô" disse-me "Olá" e falou-me em espanhol, respondi-lhe em português dizendo que percebia espanhol mas não falava. Senti-me acolhido e perguntei o que estava acontecendo.

Fiquei a saber que era o "dia das mães" e que os homens levavam uma flor para casa, para a mãe ou para a mulher, em lembrança de filhos perdidos no tempo de Pinochet.  Recordo-me que comprei uma flor, das que vendiam baratas por todo o lado, e a entreguei a uma "avó" desse grupo.

Hoje percebo que, naturalmente, passei do 1º para o 5º nível de inserção grupal ao assumir, como minha, a decisão colectiva de protesto afectivo contra Pinochet, ficando cúmplice e comprometido com essa posição.
Se houvesse risco de prisão (que não havia) eu inconscientemente tinha aceite o risco de participar no protesto contra Pinochet. Esta integração-aceitação aceitando riscos sucedia em Maio 68 com processos grupais semelhantes:

Paris, Maio-68
O interessante é que hoje reconheço que vivi depois as etapas 2º, 3º e 4º, pois acabei por jantar com o grupo numa "tasca" de bairro, com partilha, cooperação e colaboração nas acções colectivas dos rituais alimentação, informação e pertença grupal. Não sei quem eram e nunca mais os encontrei.

É esta naturalidade e facilidade de criar maturação grupal que hoje está acontecendo em grandes grupos devido aos novos instrumentos comunicativos, redes sociais, telemoveis, fotos e vídeos, etc, e permitem, por exemplo, que o movimento Occupy aconteça, em 15 Out 2011 com milhares de pessoas, em 951 cidades de 82 países, com custos organizacionais quase nulos.

Funcionamento grupal

Os grupos funcionam através de redes de comunicação cuja plena eficácia necessita das cinco etapas de maturação atrás citadas.

Não só os instrumentos comunicativos têm grande diferença entre o século XIX e o século XXI como também o empowerment do cidadão, pois o seu nível cultural e activismo politico são muito superiores à dos seus antepassados do início da Democracia. Por outro lado, os participantes políticos passaram de alguns milhares para milhões. 

O mundo mudou, a época é outra. O que, nos séculos passados, era um grupo grande hoje é considerado um grupo médio, o que politicamente era participar hoje é ser mero espectador, o que era colaborar ao dizer "SIM" hoje não é suficiente, pois colaborar é fazer parte da construção do "SIM".

Estas diferenças vão-se maturando e consolidando na sua eficiência e eficácia ao longo dos estadios da evolução grupal. Em épocas anteriores estas transformações não eram possíveis em grupos grandes mas, hoje, o desenvolvimento tecnológico na área da comunicação e a potenciação educativa no seu uso tornam espontâneo essas transformações sem necessitar de estruturas formais (lideres, normas, recursos...) a enquadrar.

Fases do funcionamento grupal

As suas cinco fases são:

 Participar

O grupo começa com pessoas a participar e participar é agregar, é "estar em...", estar no aqui-agora que acontece. Porém, se não passar desta fase, trata-se apenas de dispêndio de energia no reconhecimento mútuo e pode acabar tão facilmente como começou.
O seu comportamento mais vulgar é ouvir. Os comícios são mecanismos sociais de participação por audição que, se não passarem daí, têm efeito débil e sem consequências, daí a função dos grupúsculos em Maio 68, criando o despoletar das fases seguintes.

  Partilhar

O estadio seguinte é a partilha que necessita de um maior gasto energético ao efectuar trocas e que, na gíria, é conhecida pela fase do "toma lá...dá cá".
A partilha de informação e benesses é a forma mais usual. Porém, este estadio deve criar a ligação para as redes de conexão pessoal logo, na prática, funciona como detonador (trigger) de "clubes" (gangs) para desenvolvimento posterior.
Se por desvio cultural for usado para recrutar membros para lobbies destinados à luta do poder, as fases seguintes são contaminadas por bugs negativos, facilitadores das lutas internas habituais nos grandes grupos.

 Cooperar

Com a cooperação inicia-se a mutação das pessoas juntas na entidade grupo.
A cooperação é mais que partilha pois implica alterações comportamentais para sincronismo mútuo. Cooperar é adaptar-se e impor adaptações, é a fase da "co-acção & coacção", marca o arranque da identidade grupal, dá origem a diversos sinais de pertença desde a linguagem a vestuário, estilo de alimentação, hobbies, etc. 

Como exemplo, dar uma esmola é partilha mas não é sincronização de comportamento, logo não é cooperação, não forma grupo, não cria identidade comportamental entre o dador e o pedinte.
Porém, num estaleiro naval, um engenheiro do planeamento é um gravatinha, (fato e gravata) e outro engenheiro das oficinas/navios é um ganguinha (jeans e blusão). A identidade grupal cria "colagens" no vestuário, modificações comportamentais e de linguagem e até nos restaurantes frequentados na zona, mais estilo roast beef ou cozido à portuguesa. Distinguem-se ao longe.

 Colaborar

colaboração marca o parto do grupo. Ela introduz um outro elemento, muito mais exigente em energia e esforços que é o resultado a obter, pois a necessidade e o compromisso da sua realização implicam decisões colectivas, isto é, actos a executar com consequências colectivas.

Se este processo se faz com o estilo "yes man" o grupo morre à nascença, logo no parto. Para tal não acontecer, a fase tem que ser rica em opções pessoais com diálogos de sincronismo, recheada de opções, umas de abandono e outras de confirmação para viabilidade do resultado.
A garantia de que ninguém "ficará com os louros" da sua realização e a consciência de que sem todos não é possível, fortalece o compromisso mútuo e a cumplicidade.
Esta etapa é crucial nos rituais de constituição de equipas, na gíria é "não há heróis todos são heróis".

 Agir colectivo

Por fim, a acção colectiva é a consolidação do grupo. Ela introduz responsabilidade colectiva interna e externa. "Cola" a decisão individual e a decisão colectiva como mutuamente interdependentes, reforça o compromisso e a cumplicidade.
Re-editando Descartes com o seu "Penso logo existo" aqui, na vida grupal, dir-se-ia "Faço junto, logo existo". Esta prática de "Faço junto, logo existo" é uma das técnicas mais usadas e marcantes na constituição de equipas de risco e interdependência (militares, socorro, etc)

Como exemplo de evolução grupal,

Num organismo público, 2 grupos de 40 funcionários, por opção pessoal, participaram, cada um, durante 1 dia numa wokshop de melhoria da motivação organizacional, cuja base era "inventar soluções mas fora de motivações monetárias".

Na fase cooperação, foi possível obter por criatividade, no formato co-acção estruturada, 42 propostas de ideias para projectos. Na fase seguinte, colaboração, por decisões colectivas a nível de todo o grupo foram seleccionadas 12 para darem origem a projectos. Na última fase, acções colectivasos projectos foram definidos e estruturados pelo grupo com base num modelo de startup, contendo os items objecto, objectivos, benefícios, resultados, descrição e avaliação com 2 critérios, previsibilidade de resultados e dificuldades.

No fim do dia, o grupo apresentou, sob forma manuscrita, o plano de cada projecto seleccionado, tendo sido posteriormente dactilografados:


A base da maturação grupal foi que ninguém conseguiria definir a autoria de qualquer projecto e seu conteúdo, apenas podiam saber que todos tinham contribuído. Não existiram recusas ao resultado optado mas apenas adesões de maior-menor intensidade. Para a sua realização todos manifestaram interesse na sua execução e responsabilidade com disponibilidade para esforços, se bem que de intensidade variável por motivos pessoais.

Conclusão

O modelo de partido herdado do século XIX, com seus bugs, não possibilita à grande maioria dos seus membros passar da 2ª fase.
Alguns, aqueles que trabalham em tarefas sazonais (eleições, festas, comícios, colar cartazes, etc)  podem entrar na 3ª fase da cooperação mas normalmente com o estilo "empregado", isto é, com áreas parciais, curtas e temporárias (short action) de tarefas a executar, a conhecida "mão-de-obra-politica" nos zum-zuns do grupo dos profissionais políticos.

As 4ª e 5ª fases acontecem raramente e, mesmo nas empresas, quando acontecem por razões de eficácia, não se expandem para a cultura organizacional, excepto em poucos casos tipo Pixar e Edwin Catmull que provam que o método e o modelo já existem e funciona.

Só falta os partidos serem contaminados e o seu formato ser transformado, sendo de realçar que já há diversos sintomas da sua desadaptação, só não vê quem não quer.

Na prática, tudo começa com indivíduos que são apenas "sombras no asfalto", isto é, não existem uns para os outros, depois passam a ser "pessoas com rosto", estabelecem conexões e constroem uma rede comunicativa que mesmo desligada está em standby.
O grupo nasce pelo que o partido deixa de ser feito com "alguns primeiros entre os iguais" e passa a ser feito com "todos iguais e todos primeiros" como diz a Democracia, o segredo não é enquadrar bem  é conectar bem.

§


Continuação...

... com o 7º post, continuam as respostas, agora à 2ª pergunta, ou seja, "A sociedade? Há efeitos perversos?"



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Indice do Blog
(com links para os posts já publicados)

No princípio era o caos
A viragem da civilização 
Fugindo da estupidez organizacional
A evolução aos "éssses 

Temporada 2 - Soluções?
Não guiar pelo espelho retrovisor

Morreu o consensus, viva o dissensus

A técnica do Jazz e o dissensus
E assim, co-labora ou morre

E por fim, a democracia da cumplicidade 
Aqui no futuro?

O 1º sonho

Video resumo: Nova Democracia


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